31.5.10

o mundo dessincronizado e o engodo.


Se quiser um dia calar uma realidade,
é só pensar em outra que soe mais alto.

(já pensava o sr. Juarroz, quando decidiu calar a torneira, pensando em Mozart num volume muito mais alto).

---

A partir do mini-conto: Resolução de problemas práticos
Gonçalo M. Tavares
O Sr. Juarroz, ed. Casa da Palavra, 2007


30.5.10

uma citação:


"E estar mais longe é uma outra forma de nos escondermos."

do mini-conto: Sombras e Esconderijos
Gonçalo M. Tavares.
O Sr. Juarroz, ed. Casa da Palavra, 2007.


Auto Pilot [lost in translation 4]


auto pilot:

quando escuto uma canção sem me concentrar o suficiente na tradução,
acabo ouvindo muitas outras coisas.

I wanna fly to you....

uma canção me remete à estrada, e fico flanando pela melodia e pelos significados sem saber muito bem onde vou parar.
...
perder-se na tradução é jogo de vontades.


..........................................................


criei uma música-ficção debruçada sobre as vontades:

I wanna fly to you..
vivo ao redor
so many times in the middle of nowhere
I want fly with you
no control and "I live auto pilot".

...

viver é perder-se.
me perco nas palavras como me perco na vida.



27.5.10

porque não fotografar


pensar na falta de vontade de fotografar,
como a incompreensão de uma expectativa amorosa,
como dizia Barthes.

algo assim:
quando tento compreender a falta de ânimo para fotografar,
sempre penso em certo trecho de Fragmentos de um
Discurso Amoroso
que falava no desgaste da tentativa de compreender os
sinais.

algo assim:
se não sabemos o que o amado pensa,
no desespero de apreender a qualidade do seu sentimento
às vezes nos pegamos tentando entender
em cada gesto,
em cada palavra,
[inclusive as não ditas]
um significado oculto,
e geralmente muito mais amplo do que poderia vir a ser.

tal exercício é uma demorada sala de espera,
mas não se sai de lá para outro lugar que não seja a
frustração.

[simplesmente não há como saber o que o outro pensa].

...

e assim me pego na espiral de tentar compreender
o significado da ausência de uma ação,
a apatia diante de um gesto que sempre me inquietou.

....................

que importa?

se a insistência para a compreensão denota a abertura de
um vazio,
o que a resposta preencheria?

ainda assim não haveriam imagens
ainda assim existiria a lacuna.

a resposta é um consolo.
e provavelmente viria como uma imagem velada.

....................

como elaborar uma ação contra uma não-ação?

observar, quieta, é estratégia ao revés.
certa de que esquecerei, insisto em algo que por isso
mesmo já não vale mais a pena.

...

como os casos amorosos,
não há facilidade no jogo da compreensão.
vale esperar que o amor venha.

e se este não vier, certamente outro virá.



estou aqui, mas não quero falar.


que dizer,
quando não há vontade do dizer,

e nem vontade de ausência manifesta,
que tantas vezes se caracteriza pelo silêncio?

-----

perigo de mar, rodeado pelos tubarões.


16.5.10

uma ausência, um deserto


ter saudades de algo que nunca se teve
é exercício de projeção ou lástima silenciosa?

estes dias conversei com uma pessoa e ficamos a pensar na palavra saudade na língua portuguesa.
saudade como algo que se sente.

diferente do inglês, por exemplo,
em que a saudade pode ser um verbo, uma ação,
saudade em português, quando em exercício,
é algo sentido.

não consigo deixar de pensar como um exercício dolorido,
por mais gostoso que possa ser esse sentir.

------------------------------------

"sinto saudades do que não tive" seria somente uma força de expressão?
ou desejo travado na falta de alguma alavanca?

creio que esta alavanca é de cor insossa e se perde no mar do sentimento.
por isso difícil alavancar.
por isso difícil deixar de sentir para partir para a ação de algum outro verbo.


no fim, sentir saudade de algo que nunca se teve me parece ação contemplativa:
projetar-se e despedir-se do desejo.


9.5.10

o deserto mais aberto


sou rio que corre.
os outros nadam, observam ou caminham ao redor.

também sou a moradora mais velha do rio.
conheço todos os trajetos, suas correntezas,
suas erosões.

quando encontro os passantes do rio,
me perguntam:
para onde este rio vai?
é morno ou gelado? perigoso ou suave?
e já não sei responder.

venho pelo deserto dos dias em que não nos reconhecemos.
sigo caminhando, sem reconhecer a paisagem que muda, mas parece a mesma.
sou estrangeira no deserto.

vivo no rio-deserto.
a corrente não pára e os dias foram chuvosos
o rio se enche, parece mais denso, corre com força sem olhar para trás.

mas a velha está um pouco cega
o rio já não se parece mais como antes.

ela às vezes pensa em se mudar, pois não sabe mais o que dizer.

mas não.
[morar é projeto de insistência]
olha atenta a paisagem,
e espera o nevoeiro dos olhos passar.

o sol está iluminando o bosque.
logo vai reconhecer cada folha.
e vai aprender que não se pode enxergar todas mesmo.
não ao mesmo tempo.
[e entre uma e outra, pode-se passar anos...]

e enquanto todos perguntam
ela desaparece no meio de respostas escapistas.
[não é de todo mal que não haja respostas.]



6.5.10

o céu sobre mim

é indiferente.
ao cansaço e as alegrias.

é olhar atento, é olhar ao longe.

então, que diferença faz quando estamos alegres ou tristes
se podemos ser os dois ao mesmo tempo?

outras vezes, estamos tão repletos
que logo nos sentimos esgotados.

como estar na estrada e perder a terra de vista,
que desliza por baixo dos olhos.

a erosão em mim é sem nexo.
é como crer em tudo
[ao mesmo tempo, é não crer em nada].

não há uma gota de orvalho que ilumine o nevoeiro.
tem seu próprio tempo,
tem suas intenções.


às vezes acordo e percebo que o dia é completamente diferente.


se a memória recente ainda arde na pele,
como viver a dissonância entre estes dois dias
ambos sonhados, ambos reais?...

nenhuma gota escorre pelos dedos,
nenhuma gota cai na retina.

fica ao longe, não serve de lupa para o outro dia
[aquele de outra dimensão].

no entanto é esta mesma gota que atravessa o nevoeiro em direção ao meu olhar.
é lá que vejo o verde e o laranja do dia que nem chegou.
sonho luz e sonho nevoeiro.

viver ambos é projeto de insistência
e sua alternância é que lhes confere sabor.